uma falsa questão para a comissão das diretrizes curriculares em jornalismo

pingos_nos_isApós uma oportuna jornada de audiências públicas envolvendo diversos setores interessados da sociedade, a comissão de especialistas que trabalha na reforma das diretrizes curriculares para os cursos de Jornalismo trabalha para finalizar um documento-síntese sobre o tema. O texto deve ser encaminhado ao Ministério da Educação em meados de agosto, para avaliação e tramitação no Conselho Nacional de Educação. Entre a versão da comissão e o texto final das novas diretrizes, muita coisa pode acontecer. Há quem ainda peça mais tempo para discussão e reflexão sobre o tema – é o caso da Fenaj -, mas sabemos todos que mudanças nos cursos de Jornalismo são ansiadas e até mesmo urgentes.

A comissão trabalha nas sugestões feitas, e talvez não seja mais possível agregar novas contribuições. Por isso, apenas sinalizo aqui um temor pessoal nas últimas rodadas de discussão que li em sites e blogs. Receio que ganhe cada vez mais relevo um aspecto que, na minha forma de ler, é uma falsa questão para a comissão de especialistas.

Nas últimas semanas, muito decorrente da terceira audiência pública promovida pela comissão, diversos atores sociais manifestaram suas preocupações com uma formação mais humanística nos cursos de Jornalismo. Mais que isso, frisaram da necessidade de se construir currículos com fortes doses de disciplinas desse naipe, de maneira a garantir formação mais amplas e sólidas aos novos jornalistas.

Penso que essa é uma falsa polêmica, uma falsa questão para o tema.


Desvio de função

Estive em São Paulo na terceira audiência e percebi uma clara tendência de sugestões em torno de conteúdos a serem incluídos nos currículos dos cursos de Jornalismo. Diversos colegas que usaram o microfone se restringiram a defender certas unidades de ensino e disciplinas em detrimento de outras, e muitas dessas sugestões são realmente muito bem vindas. No entanto, não era o caso de fazê-las ali. E por uma questão simples: a comissão que trabalha nas diretrizes NÃO VAI DITAR NOVOS CURRÍCULOS para os cursos. A comissão vai elaborar um texto que sinalize orientações mais gerais de formação. Daí que o documento das atuais diretrizes curriculares sinalize perfis desejáveis para os egressos dos cursos e competências e habilidades a serem perseguidas e desenvolvidas.

A LDB prevê as diretrizes, e essas diretrizes apontam os focos de formação esperados. Cabe aos gestores – coordenadores e coordenadores pedagógicos – estruturarem seus currículos de forma a satisfazer tais diretrizes. Por isso que as sugestões de conteúdo – embora ricas e interessantes – feitas na terceira audiência pouco importam à comissão. Se os especialistas se detiverem a listar conteúdos para rechearem currículos, estaremos retornando à lógica dos currículos mínimos dos anos 1980 e incorrendo num tremendo desvio de função da comissão.

Sei que esse risco é pouco provável. Na terça, 26 de maio, o presidente da comissão, José Marques de Melo, disse no programa televisivo do Observatório da Imprensa que não cabia àquele colegiado ditar novos currículos para os cursos. Mesmo sabendo que a comissão está consciente desse papel, é importante tornar muito claro o alcance de um documento como o das diretrizes curriculares.


Mais humanidades. Mais?

O coro ouvido nas últimas semanas clamou para que os cursos de Jornalismo contemplem uma formação mais humanística. Acho importante e oportuna a sugestão. Entretanto, ela precisa ser colocada em perspectiva para que se possa avaliar a sua real pertinência. Proponho ao leitor que pense em cinco escolas de Jornalismo no Brasil. Peço então que entre em seus sites e que acesse suas matrizes curriculares, seus ementários ou – quem sabe? – seus projetos pedagógicos. Notem a proporção de disciplinas específicas para a formação jornalística e as que poderiam ser classificadas como disciplinas mais amplas, de sustentação e formação humanística.

Posso afirmar que quaisquer que sejam as escolas listadas pelo leitor, em todas elas veremos disciplinas como Sociologia, Antropologia, História, Filosofia, Psicologia, entre outras. Veremos a clara preocupação de oferecer saberes de base para que os futuros jornalistas estejam preparados para analisar cenários e compreender realidades. Veremos também algumas tentativas de conexão entre essas unidades de conhecimento com a prática jornalística. Pois bem. Não é demais dizer que as humanidades fazem parte da formação oferecida nos cursos de Jornalismo, e eu estenderia isso a todo o Brasil. Venho desenvolvendo uma pesquisa sobre ensino de deontologia jornalística entre os cem cursos mais tradicionais do país. Isso tem me obrigado a analisar matrizes curriculares e ementas, e o que venho encontrando – entre outras coisas – é esta presença bem evidente de disciplinas de humanidades.

Com isso, pergunto: se os cursos já oferecem doses elementares de humanidades, precisamos valorizar ainda mais esse tipo de formação? Essa formação ampla é mais importante que a específica, voltada ao exercício profissional? Existe fórmula para equilibrar esses termos da equação?

Ana Arruda Calado, no mesmo programa do Observatório da Imprensa, foi pontual na questão: o problema não está na quantidade desses conhecimentos, mas na integração das formações humanística e específica. Isto é, precisamos trabalhar melhor nossas matrizes curriculares, nossas ementas, nossos planos de ensino, de forma a fazer com que as humanidades não sejam mais adereços nas situações de sala de aula, mas se amalgamem com as práticas da profissionalidade. Neste sentido, estendo o mesmo raciocínio para a falsa dicotomia teoria-prática, que também carece de mais atenção por professores e supervisores pedagógicos.

Cinismo e injustiça

Pareceu-me que o argumento dos defensores de mais humanidades nos cursos de Jornalismo está baseado na generalização de que os novos jornalistas chegam às redações totalmente despreparados. Isso é possível sim. É plausível que os egressos que não tiveram experiências profissionais anteriores ou simulações pedagógicas dos desafios das profissões desaguem nas redações como quem não sabe a que veio. Mas isso não é “privilégio” dos cursos de Jornalismo. Em outras áreas, existem claras oportunidades de ensaio, de exercício, de estágio supervisionado. Jovens formados em Medicina precisam passar por tempo de residência; concluintes dos cursos de Direito estagiam em escritórios do ramo, bem como egressos da Engenharia não saem por aí assinando projetos…

Dos jovens jornalistas espera-se que saiam completos, maduros e competentemente formados para o trabalho. Esquecem-se que a lei que regulamenta a profissão impede o estágio na área, e que muitas escolas de Jornalismo não detêm bons laboratórios para atividades práticas que poderiam servir de ensaios profissionais. Mesmo assim, exige-se que os jovens jornalistas saiam plenamente aptos à lida cotidiana.

Não se trata de passar a mão sobre a cabeça dos egressos. Não. Defendo que os cursos de Jornalismo contribuam de maneira decisiva para a transformação de amadores em profissionais capacitados para a atividade. Defendo também que sejam cursos de qualidade, com alta exigência pela excelência técnica, com grande potencial para formar jornalistas críticos e conscientes, responsáveis e éticos. No entanto, é  – no mínimo – cinismo esperar que os egressos desses cursos saiam plenamente preparados para um mercado em transformação se tanto a formação acadêmica quanto seu entorno são incapazes de assegurar condições plenas de capacitação. Isso sem contar na idéia equivocada de formação restrita aos quatro anos de curso. Profissionais – e jornalistas não estão fora disso – devem estar em constante formação, reciclagem e aprimoramento…

Foco na formação

Mesmo que o argumento seja generalizador, cínico e injusto, ele nos ajuda a ajustar o foco da formação que se deve perseguir nos cursos de Jornalismo. Os jovens jornalistas chegam crus nas redações? As razões são muitas, mas os erros e deslizes que colhemos todos os dias não estão circunscritos apenas nos focas. Gente muito experiente tem derrapado por aí. E não por conta de formações humanísticas deficientes, mas sim por problemas de formação específica em jornalismo.

Jovens repórteres têm saído para suas matérias sem saber como e onde buscar informações. Muitas vezes, não sabem formular perguntas ou conduzir entrevistas. Jovens pauteiros elaboram pautas inconsistentes ou que pouco orientam repórteres. Editores, nem sempre jovens, penam em como articular os conteúdos e materiais que têm à disposição e que devem oferecer ao público.

Isto é, os egressos dos cursos de Jornalismo precisam ter acesso a disciplinas e conteúdos que lhe permitam ler cenários, compreender realidades, analisar circunstâncias. Estudantes de Jornalismo precisam ter aulas de Sociologia, mas não sairão sociólogos formados. Sairão jornalistas que precisam saber buscar informações, apurar, relatar com precisão e correção. Sairão jornalistas que devem inquirir sociólogos, antropólogos ou outras fontes de informação com rigor, atenção e foco.

Por isso, insisto, a defesa de conteúdos mais humanísticos nos cursos de Jornalismo é uma falsa questão. Não é o que a comissão busca. Os cursos já têm disciplinas dessa natureza, e nossos problemas de formação têm sido mais graves na capacidade dos jovens profissionais atuarem bem na especificidade da profissão.

13 comentários em “uma falsa questão para a comissão das diretrizes curriculares em jornalismo

  1. Rogério, quero apenas contribuir com uma tucandeira na sua luva. Considero válida sua preocupação/discordância sobre a proposta de incluir mais disciplinas humanísticas. Antes de pensar que “quando formado” o cara vai se deparar com especialistas em várias áreas (se assim fosse, o estudante teria de estudar disciplinas de exatas, biológicas e por aí vai), a gente deve pensar na importância até mesmo de saber de onde/como/por que surge o estudo da comunicação, então como não estudar psicologia, sociologia etc? E depois o que a ação da comunicação provoca nas sociedades etc. E isto é só um lado da necessidade. O que a gente aprende na faculdade são apenas fragmentos de tudo.
    O que falta para potencializar a formação humanística nos cursos? Está aí no meio do seu texto: faltam professores que estejam envolvidos ou compreendam o que é “fazer comunicação, fazer jornalismo”. E isso, sim, é o mais difícil! Eu tive aulas de filosofia com uma professora-filósofa fera na disciplina, mas não via conexão daquilo tudo com o jornalismo. E demorei alguns anos para poder encontrar isso. Eu conheci um professor de arte que chegou em uma sala de aula e disse “não sei o que estou fazendo aqui, não sei o que jornalismo tem a ver com arte”. E conheci também muitos alunos que não entendem por que diabos tem de estudar “sociologia”. Ora, tucandeiras, onde é que está a falha? Não é na proposta em si, mas na forma como é conduzida no dia a dia.

  2. Por algum problema no sistema de comentários deste blog, o professor Marcos Palacios não pôde deixar o seu, que transcrevo a seguir:

    “Apenas um adendo. A Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia tem um currículo de Jornalismo que foi “reformado” pela última vez em 1999 e entrou em vigor em 2000. Está longe de ser perfeito e certamente será objeto de proveitosos ajustes, uma vez estabelecidas as novas diretrizes curriculares, até porque uma década é muito tempo em termos de estrutura curricular e ementários.
    No entanto, creio que na última reforma fizemos um movimento, no que diz respeito ao ensino das “Humanidades”, que vale a pena mencionar: a aproximação das disciplinas de “Humanidades” com a Comunicação. Assim, substituímos Introdução à Sociologia, Antropologia, Filosofia, Política (disciplinas que, muitas vezes, eram ministradas por colegas dos cursos específicos na UFBA, centrando-se nos “Primórdios” ou em questões muito específicas de teoria sociológica ou do pensamento político ou filosófico) por um conjunto de disciplinas que pretende aproximar as Humanidades da Comunicação. Assim, temos como peças basilares do currículo de Jornalismo as disciplinas Comunicação e Tecnologia (com conteúdos de Sociologia e Antropologia), Comunicação e Política, Comunicação e Atualidade I e II (com conteúdos de História e Análise de Conjuntura) e Estética da Comunicação.
    Volto a insistir que não se trata de um modelo perfeito, mas certamente essa aproximação com a Comunicação, no ementário , evita (por exemplo) que estudantes de jornalismo passem um semestre inteiro discutindo as diferenças entre as idéias de Comte e Durkheim que, por mais importantes e instrutivas que possam ser, têm pouca proximidade com a área específica de formação de um jornalista….
    Saudações,
    Marcos Palacios
    Professor Titular de Jornalismo
    FACOM/UFBA”

  3. Concordo plenamente com sua opinião, Rogério, embora não tenha nem 1% do seu conhecimento dos currículos de Jornalismo país afora.

    Do meu ponto de vista, o problema da falta de preparo dos focas não se deve a uma deficiência dos cursos de graduação, mas do ensino médio. Princípios básicos de filosofia, sociologia, antropologia etc. deveriam ser aprendidos no segundo grau (isso ainda existe?). Vou mais longe: o que falta, no fundo, é cultura geral. A gurizada não lê nada durante os 11 ou 12 anos de colégio e não é a universidade que vai preencher a lacuna em quatro anos. Em vez de integrar mais disciplinas de humanidades nos currículos, talvez fosse mais eficiente as faculdades incentivarem os estudantes a frequentar cadeiras eletivas nos cursos de Sociologia, História, Filosofia, ou até cursos externos.

    Acho que os estudantes devem assumir a responsabilidade por sua formação, também. Irem atrás do conhecimento de que sentem falta. Tomarem iniciativa. E se o sujeito passa quatro anos numa universidade e não se interessa em aprender nada além do mínimo necessário, basta não contratá-lo.

  4. Caro Rogério,

    Nessa proposta de carregar ainda mais nas Humanidades não estaria oculta a idéia de que qualquer graduado, de qualquer área, cursando mais dois anos de Jornalismo estaria habilitado a exercer a profissão, quando sabemos que os quatro anos atuais são insuficientes para uma boa formação? Alguns cursos também insistem nas Letras e oferecem Inglês nos quatro anos do curso como se fosse possível aprender Inglês dessa forma…Vivenciamos tais equívocos aqui na UNESP/campus de Bauru.

    Atenciosamente,

    Prof. Pedro Celso Campos

  5. Obrigado, Alescar, pela cutucada. Existe mesmo tanta coisa a mudar no ensino de Jornalismo no Brasil!

    Palacios, esse movimento de revisão de matrizes é sempre bem vindo. Aliás, cada vez mais, os pedagogos e curriculistas falam de matrizes e não grades de currículo, o que já sinaliza uma flexibilização e não engessamento. Obrigado pelo comentário e desculpas pela impossibilidade de postagem no mesmo momento…

    Trasel, você traz um elemento importante para o debate: o papel dos alunos no processo de ensino e aprendizagem. E quanto a isso, há tanto a se falar, né? Obrigado e volte mais vezes.

    Pedro Celso, eu não havia pensado nisso e resisto um pouco às teorias conspiratórias, mas admito: faz sentido o que você diz. Obrigado pela visita.

  6. Rogério, ainda bem que não falei besteira, pq, realmente, não entendo do assunto, são apenas percepções sem sistematização. O que o prof. Palacios falou está muito ligado ao que tentei passar, sendo que, pelo que vi no comentário dele, na UFBA há uma concretização da ideia.

  7. Oi, Rogério. Acredito que a teoria e a cultura do Jornalismo precisem ser mais enfatizadas na formaçào dos novos jornalistas. Quanto às humanidades, são muito importantes para a formação política do profissional. Mas acredito que neste momento é o Jornalismo mesmo, em seus gêneros, práticas e teorias que esteja necessitando mais de reflexão nas escolas.
    A velha pergunta retorna retumbante – o que é jornalismo, hoje? Quem sabe organizas um livro sobre isso?
    O risco de se aumentar as humanidades nas diretrizes é esgarçar ainda mais os conceitos já frouxos do jornalismo contemporâneo. Digo isso do ponto de visrta de um jornalista que tem mestrado em Sociologia Política e faz Doutorado em Ciências Humanas. O que sinto é que quanto mais estudo essas áreas, mais me sinto afastado do Jornalismo.

  8. Alesscar, o prioritário é mesmo discutir e pensar. Depois, propor soluções, buscar saídas. Sempre aprendendo com os outros e com os próprios erros, né não??? abs

    Fernando, cê veio com tudo, né?
    Em uma frase, você sintetizou o que eu disse em centenas…
    “O risco de se aumentar as humanidades nas diretrizes é esgarçar ainda mais os conceitos já frouxos do jornalismo contemporâneo”.
    É isso, velho!!!

  9. Rogério,
    gostei de sua análise. Estamos trabalhando na atualização em nosso projeto político pedagógico e acrescentaria a essa questão do reforço das humanidades o olhar que devemos ter sobre as diretrizes que o Reuni aponta. É preciso ir mais longe do que reforçar, se é que é o caso, as humanidades porque hoje estamos sendo provocados a pensar uma melhor articulação entre o que somos e os que queremos ser, mas uma articulação menos no plano das idéias e mais no plano do essencial, do efetivo.
    Desde meus tempos de estudante que participo de fóruns, congressos, mesas redondas e até hoje não sei qual é o jornalista que as Universidades querem formar. “Brigamos” com conceitos, teorias e massageamos nosso ego de docente ao encher a boca para dizer que nossa preocupação é preparar nosso aluno para uma leitura crítica do mundo. Essa peripécia a gente conquista como? Pincelando doses homeopáticas de sociologia, filosofia, antropologia dissociadas de qualquer senso prático e objetivo da profissão? Certamente que não. Assim, junto-me aos que consideram mais importante do que “reforçar”, mas melhorar o que já fazemos. Pensar sobre o que fazemos para aí sim procurarmos romper com muitas falsas dicotomias e dogmas aos quais nossos cursos se rendem.
    Acabamos, nós, comunicadores, no discurso do vazio e nos recusando a pensar as saídas para nossas ciladas, sendo que a maior delas é: formar em quatro anos um cara que seja bom em tudo, com formação ampla, domínio técnico e que além de tudo não se esqueça do lema da ética. Bem, esse trabalho, se me permitem a ironia, é uma tarefa para um super-herói. Nada contra as humanidades, nada contra as especificidades. Mas tudo, absolutamente tudo, a favor do bom senso. E ele manda que as paixões sejam superadas pelas proposições que apontem o caminho para a resposta que nos corrói: quem somos e quem queremos ser. É a partir daí que podemos saber o que temos de mudar e como devemos mudar. Desculpem pelo desabafo.
    Marluce Z.
    Professora de jornalismo da UFT.

    1. Oi, Marluce!
      Não é desabafo não. É diálogo, é discussão, é debate. Justamente as melhors formas de encontrarmos saída.
      Volte sempre.
      abs

  10. Vou por tópicos, meus caros (quanto tempo Chistofoletti e Arteche):

    0) A primeira coisa a ser ensinada na faculdade é que depois que o cara se forma e vai pro trabalho sujo, que hoje são as redações, é que não vai mais ter tempo de pensar muito sobre diretrizes curriculars nem comentar nos blogs dos amigos, hahahaha. Corre o risco de ficar burro, bitolado e ranzinza antes do tempo. (Talvez o lance seria mesmo fazer uma aula inaugural tipo a do Bope, ficar 48 horas sem dormir e segurar uma granada. Se passar por isso, vai sobreviver a salário baixo, cobranças desmesuradas, inimizade com toda e qualquer pessoa pública, falta de tempo pra si mesmo, gastrite, insônia, etc.). Zueira à parte, espero que tenham paciência pra parte séria.

    1. O Arteche é o cara (até porque com mestrado e fazendo doutorado tem cacife pra dizer o que diz). Nessa de não ser ciência, métodos que foram se fazendo com a prática, de ter função pública e ser empresa privada, de viver nesse limbo entre mundo mundano e intelectual, a definição de Jornalismo é ampla demais. Ora é aquela mera satisfação da nossa curiosidade humana sobre fatos bobos (bizarrices do G1?); ora é quase que um braço da Justiça onde ela não funciona (tem casos em que dá mais resultado o problema aparecer no jornal do que virar ação do MP).

    2. Falando do lado da prática, do mercado – e olha que eu gosto pra caramba de teoria (me chamem de doido) -, sei que são coisas bastante específicas, mas assuntos “humanísticos” dos quais eu senti necessidade e vejo que colegas também sentem ao caírem numa redação, numa boa assessoria (agência de publicidade, hehe), são:

    a) Noções básicas do Estado de Direito. Poderes, competências, processos, polícias, blá-blá-blá. O que nos rege é uma Constituição e uma trambolhada de leis que nem o Gilmar Mendes conhece direito. É coisa que vem lá de Roma, que diz respeito a políticos e ao Judiciário, duas “entidades” (uns diriam, pés-nos-sacos) que vão nos acompanhar pro resto da vida profissional. E infelizmente saímos do colégio, da faculdade, sem entender patavinas disso, sem entender que é essa engrenagem complexa e abstrata que rege nossa vida. Que se isso não existir, voltamos à barbárie. Como boa parte daquilo com que lidamos são problemas, e problemas são resolvidos na Justiça (ou deveriam), entender esse Estado de Direito, como as coisas se processam nele, suas limitações, é básico pra qualquer cidadão sobreviver, ainda mais pro jornalista. Entendendo um pouquinho disso, o cara já perde uns 30% da ingenuidade.

    b) Noções básicas do mundo das Finanças. Os grandes furos, quase todos, estão em cifras do dinheiro público. E isso não serve só pra quem vai pra redação. Assessoria também. Vai ser assessor de uma grande autarquia pra ver o tanto de dinheiro, cifra, interesse e desvio que rola. Tem que entender isso. Tem que entender o que é licitação, como as coisas são feitas ou escamoteadas. É a engranagem que move o mundo das corporações públicas e privadas. Lidaremos com isso boa parte da vida. Não é ter aula sobre a obra de Adam Smith. Tem que saber quem é o cara e o que ele fez, claro. Se ler (e entender) A Riqueza das Nações, ótimo, vai ser o diferencial depois (desde que não use isso só pra por uma boina na cabeça e dizer que é contra o capitalismo, que é outra burrice que muito curso de jornalismo forma). Mas saber o caminho do dinheiro no nosso mundo prepara muito o cara pra dureza da realidade. E mesmo que for cobrir cultura, vai ter Minc, editais, etc., o sujeito vai ter que entender. Então, pronto. Ensine-se essa joça. Mais 30% de dúvidas esclarecidas.

    c) Psicologia e disciplinas que digam respeito ao ser humano. Lidamos com gente, cheias de problemas, de dúvidas, de angústias, de criatividade, etc. Principamente (que é o que nos interessa) gente cheia de histórias. Essa é nossa matéria-prima. E a galera sai despreparada pra encarar o público. É pedreira, pepino, acabaxi, coisa espinhosa mesmo. É o político ou empresário ladrão, ranzinza ou conquistador que a loirinha bonitinha ou o foca nerd vão ter que botar contra a parede. É a mãe do filho viciado em crack que roubou tudo dentro de casa, estuprou a irmã e ameaça o pai de morte. É o dono do beco que te olha bem fundo na cara, algemado na delegacia, e diz: “Eu sei que tu mora na rua tal”. A gente tá na linha de frente dos conflitos. Assessoria – e assessoria boa, de um hospital público, de uma grande secretaria de obras, de um órgao fiscal – é a mesma pauleira. Lidar com gente, seus mundos, interesses, problemas, etc., é um baita aprendizado. O jornalista parece preparado hoje pra lidar com abstrações, papéis, coisas fáceis, não pra tomar soco na boca do estômago. E se quer ir pro front, nao vai escapar disso. Se fosse um pouco mais preparado, sofreria menos, reclamaria menos e faria um trabalho melhor. Isso dá mais 40% e fecha a parte humanística.

    3. Aí vem técnica. Saber ler. Não adianta ler muito pra dizer que leu, que é intelectual ou de esquerda (tem gente que confunde os dois). Tem que saber processar o que está escrito. Saber ouvir, enxugar o que interessa e o que é blá-blá-blá. Saber pegar isso que leu e/ou ouviu e dar foco, hierarquizar, pesar as versões, enxugar as rebarbas. E aí sim saber transmitir pros outros. Aí entra saber escrever, falar, se preciso vai lá e desenha (principio da infografia). Só que parece que isso acaba vindo antes: o deslumbramento com o texto bem feito, com o movimento da câmera, com a interatividade, com uma edição assim ou assada. O cara vai fazer jornalismo porque quer ser escritor, cineasta, fazer “foto artística” (nossa senhora!). E dá no que dá. Não adianta dominar as técnicas (isso vale muito para a web) se o cara não entende o mundo. Não vai saber transmitir, vai pagar mico. Os temperos, é claro, vêm depois. As entrelinhas, a confiança das fontes, o acesso à informação em primeira mão, as sutilezas. É quando se pode dizer: a “arte” do jornalismo.

    Bom, isso não vai mudar matriz curricular nenhuma, mas enfim, tá dito. Não sei se agrada ou desagrada. É meio pé-no-chão demais, concordo. Mas é isso. O jornalista (o médico, o engenheiro, o juiz, o administrador…) sabendo um pouco do que o aguarda aqui fora vai ter mais preparo na sua missão, que é ajudar a pôr um pouco de ordem nesse caos cotidiano.

    Abraços.

  11. Ô perfeccionismo, mas uns errinhos e esclarecimentos: era pra ser “agência de publicidade não vale, hehe” (2) só pra pegar no pé do cara que se forma em jornal e vai vender anúncio (ó vida, ó céus). Seria mais correto citar Marx em vez de Smith (b), reconheço. E, ah, o caos cotidiano não vai acabar nunca (3) e o salário menor do que o de médico, engenheiro, juiz, administrador. Abraços

  12. Valeu, Kreidlow. O amargor continua, mas notei doses maiores de ironia, bom humor e sarcasmo no post, o que mostra que você estava num bom momento quando escreveu….heheheh… tanto melhor!

    Obrigado pelo comentário – ou post? – e pelas contribuições… forte abraço

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