discussão sobre o diploma está muito ideologizada

As últimas semanas têm sido muito agitadas no que tange a discussão em torno da formação dos jornalistas. A Fenaj divulgou ostensivamente uma pesquisa que mostrava que a maioria da população prefere que os profissionais do jornalismo passem por cursos superiores na área. O resultado da sondagem serviu de munição para a entidade que mobiliza a categoria para o julgamento no Supremo Tribunal Federal da liminar que desobrigou a exigência de diploma universitário para jornalistas.

(Para quem não se lembra, em outubro de 2001, a juíza Carla Rister atendeu a uma ação civil pública que pedia essa desobrigatoriedade. A ação foi movida por grandes empresas jornalística e, concedida a liminar, permitiu que mais de sete mil pessoas obtivessem registros profissionais independente de diploma na área)

Dias depois, uma matéria do site Congresso Em Foco colocou mais lenha na fogueira, informando que a maioria dos magistrados que julgarão a matéria já sinalizou pela rejeição à obrigatoriedade. O próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, chegou a sinalizar que os cursos de graduação poderiam não ser as únicas portas de entrada de profissionais no jornalismo.


Gritaria na web
Na internet e entre jornalistas, estudantes e pesquisadores da área, o assunto tem rendido discussões acaloradas. No Observatório da Imprensa, todas as semanas, artigos são publicados e versões são confrontadas. Numa lista eletrônica restrita a professores e pesquisadores da área, o professor Marcos Palácios insistiu em discutir aprofundadamente a possibilidade de mestrados profissionalizantes serem uma alternativa na formação de quadros mais qualificados para a profissão. Em poucos dias, a mensagem de Palácios foi objeto de reações as mais diversas, quase todas muito, mas muito apaixonadas, fazendo prevalecer argumentos corporativos e questionáveis.

Na blogosfera, gente influente do mercado e da academia vem se posicionando. Carlos Castilho (Código Aberto), por exemplo, ressalta o fato de que as escolas de comunicação não têm sido capazes de formar profissionais que possam enfrentar os novos desafios do jornalismo, provocados pelas novas tecnologias.

Alex Primo, por sua vez, afirma que a defesa do diploma não poder ser uma defesa do diploma per se, mas da formação de qualidade dos profissionais. Marcelo Träsel pega o gancho e envereda para o impacto que as novas tecnologias vêm provocando na atuação cotidiana desses profissionais. Já Márcia Benetti criticou violentamente a morosidade da inteligentsia brasileira, esperando uma atitude mais pró-ativa na condução e elevação do nível dos debates. Cética, ela acha que a batalha no STF está perdida e com a desregulamentação no jornalismo, não só os jornalistas perderão.


Os sofismas da liminar
Discuto a obrigatoriedade do diploma desde 2001, a partir da concessão da liminar. De 2002 a 2005, debati o tema, mesclando preocupações conceituais e corporativas, já que ocupava a vice-presidência do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina. Desde então, tenho feito uma autocrítica que me faz ver que a condução da questão não pode seguir essa orientação. Isto é, hoje, o debate está muito, mas muito ideologizado, o que é uma pena. Afinal, as questões centrais são deixadas de lado.

Primeiro, é sofismático o raciocínio que sustenta a liminar da juíza Carla Rister. Grosso modo, ela afirma que restringirmos o exercício do jornalismo àqueles que detêm diplomas universitários é um desrespeito à liberdade de expressão e a manutenção de um privilégio elitista. As premissas estão incorretas. Não se pode confundir o direito à liberdade de expressão com o exercício profissional do jornalismo. São coisas de natureza distinta. O primeiro é um direito, previsto em diversos protocolos, inclusive na Declaração Universal dos Direitos do Homem. O segundo é uma atribuição específica que depende de uma habilitação para tal. Isto é, o exercício de uma profissão exige conhecimentos técnicos, competências e habilidades para ser efetivado. No caso das profissões regulamentadas – e o jornalismo é uma delas -, há outras exigências, inclusive burocráticas para a obtenção de registro profissional. A inclusão da obrigatoridade de diploma universitário é uma maneira de contribuir para que os quadros que exerçam o jornalismo passem por uma formação mais ampla, mais específica, mais qualificada. Isso garante que essa formação aconteça? Claro que não. Mas as leis prescrevem e outros instrumentos devem garantir a efetivação das políticas previstas em lei.

Se formos confundir o direito à liberdade de expressão com o exercício profissional no jornalismo poderemos também nos exceder e misturar acesso à justiça (um direito) com a possibilidade de ser advogado (um exercício profissional regulamentado, previsto em lei e consolidado como prática social há anos)…


Cortar a cabeça do paciente
Outro sofisma na liminar é o que condena a elitização. É verdade que nem todos têm acesso aos bancos escolares universitários. É verdade também que o salário mínimo previsto na Constituição não garante o sustento pleno de uma família de quatro pessoas. Nem por isso se defende por aí o fim do salário mínimo. O que se faz é a reivindicação de seu aumento, e da sua extensão como uma remuneração mínima, referencial para o mundo do trabalho. Da mesma maneira, não se pode atribuir à regulamentação dos jornalistas um insucesso da política pública nacional de universalização do ensino superior. Se as universidades ainda são um sonho e uma realidade de poucos, deve-se trabalhar para transformar essa realidade, e não atentar contra os cursos ou as instituições.

Retirar a obrigatoriedade do diploma para jornalistas é recuar na história na medida em que reforçamos o entendimento de que não é necessário estudar, não é preciso se habilitar ou se capacitar para uma dada profissão. Com isso, antipedagogicamente, contribui-se para a idéia de que a escola não forma, não ajuda no desenvolvimento do sujeito, tem um papel sobressalente e descartável.

Pensando assim, agimos como o médico que decide cortar a cabeça do paciente que se queixa da dor. Decepar a parte doente não resolve o problema. Não se cura a dor. Pior: mata-se o paciente…

De qualquer forma, cabe pensar. Se as escolas brasileiras de comunicação são incapazes de despejar no mercado de trabalho profissionais qualificados, por que as empresas – de todos os portes e de todas as partes do país – continuam contratando esses jovens jornalistas?


Qualidade na formação
A discussão acerca do diploma para jornalistas sempre traz à tona uma suspeita sobre a capacidade das escolas de formar bons profissionais. Um argumento recorrente é o de que o mercado poderia fazer o mesmo, de forma mais barata e mais direcionada aos seus propósitos. Esse argumento é facilmente derrotado quando se lembra que o mercado não tem prerrogativa nem atribuição para formar profissionais, já que esta função é das escolas, das instituições e sistemas de ensino, que existem para isso. A idéia pode ser derrubada também pelo fato de que o mercado não tem condições de treinar e aprimorar todos os contingentes que anseiam por isso. O mercado não ensina, as empresas não têm infra-estrutura nem tempo ou prioridade para fazê-lo.

Cabe e deve caber às escolas de comunicação esse serviço: preparar profissionais para os desafios do mercado e as demandas sociais. As escolas de comunicação precisam ter (e muitas já têm) as condições necessárias para formar bons profissionais, já que reúnem quadros qualificados (e em constante aperfeiçoamento), infra-estrutura, experiência pedagógica. Há escolas ruins? Sim. Mas há boas também. USP, UFBA, Cásper Líbero, as PUCs, a UFSC, a UFRJ e a UnB não são bons exemplos de escolas de jornalismo?

Como em outras áreas do conhecimento, há exemplos e contra-exemplos. Veja o caso do Direito. Existem centenas de escolas no país que despejam milhares de novos profissionais todos os semestres no mercado. Apesar dessa quantidade, a OAB – volta e meia – se queixa que os concursos para juízes não preenchem a totalidade de suas vagas por conta da performance insuficiente dos candidatos. Nem por isso se prega o final das escolas de Direito no país… O que a OAB faz é recomendar as boas escolas, e com isso – de maneira afirmativa – sinaliza saídas positivas, esquenta a concorrência e obriga os cursos pouco recomendados a correr atrás…

As escolas de comunicação têm muito a melhorar? Sim, e precisam se preocupar com isso. Professores e pesquisadores da área precisam construir instrumentos e indicadores que afiram qualidade de ensino, eficiência na formação. Com isso em mãos, é mais fácil visualizar os resultados dos cursos, seus impactos nos mercados regionais, suas influências nas práticas e processos cotidianos, e até mesmo em procedimentos inovadores.

Nos anos 90, setores da academia que formavam a Fenaj concluíram um documento bastante importante para a qualificação do ensino na área do jornalismo. O Programa Nacional de Estímulo à Qualidade da Formação em Jornalismo é um instrumento detalhado, abrangente e aprofundado. Sabe-se que o texto de 1997 passou por avaliações e ajustes, e mesmo assim, passada mais de uma década, poucas escolas colocaram tais políticas em funcionamento. Não porque a proposta seja ruim. Pelo contrário: de tão boa, de tão comprometida, as escolas sentem dificuldade de contemplar todos os pontos, o que inviabiliza a sua implementação.

Entre outras coisas, significa que só o documento da Fenaj não basta e são necessários outros elementos para influenciar positivamente as instituições de ensino.


Debate ideologizado
O que, modestamente, venho percebendo é que a discussão em torno do diploma tem sido contaminada muito mais por elementos ideológicos do que racionais ou práticos. Isto é, a defesa do diploma fica muito circunscrita a argumentos circulares que endeusam o diploma por sua essência e não pelas qualidades ou potencialidades que pode reservar. Com isso, a defesa da formação universitária em jornalismo alcança contornos meramente corporativos.

É preciso entender que é legítima a atuação corporativista de sindicatos e da própria Fenaj, afinal, são entidades classistas e têm a função de defender os interesses da categoria. Entretanto, a questão da (boa) formação dos jornalistas transcende os interesses profissionais, já que jornalismo e comunicação são atividades de finalidade pública, de clara interferência no cotidiano e no imaginário das pessoas. Isto é, essa questão afeta a todos, produtores ou consumidores de informação. Como é o caso da Medicina ou da Engenharia, por exemplo. Imaginem se estivesse em questão a formação universitária (ou não) de médicos ou engenheiros? Isso não afeta toda a sociedade que se serve de seus serviços?

Como disse, é legítima a defesa corporativa do diploma, mas é insuficiente. A sociedade ou o STF não se comovem ou se mobilizam por isso. É necessário mostrar que o jornalismo é uma atividade de caráter social, e o seu exercício dependem de preparo técnico, de rigor ético, de comprometimento com o interesse público, entre outros fatores que incidem concretamente na vida das pessoas.

A campanha pela defesa do diploma que a Fenaj tem levado adiante tenta mostrar essa faceta mais social do jornalismo, mas não sei se vem causando os efeitos desejados. Por quê? Porque a Fenaj é parte interessada na manutenção do diploma, por uma questão de reserva de mercado, de controle da entrada dos profissionais no ramo. E porque é parte interessada, sempre será olhada como suspeita…

Por isso, hoje, não sei mais se a Fenaj deveria liderar e conduzir o debate acerca da formação dos jornalistas. Não porque seja ilegítima. Não porque não seja representativa. Não. A Fenaj é uma instituição legitimada e representa 31 sindicatos de jornalistas em todo o Brasil. Tem 60 anos de grandes contribuições à categoria e à profissão. Mas há tempos vêm sofrendo desgastes políticos internos e externos que combalem a sua imagem, e isso dificulta a sua atuação.

O discurso compreensivelmente ideológico da Fenaj em torno do diploma cumpriu um papel fundamental de colocar a questão na agenda nacional, de mobilizar setores nas redações e assessorias, nas escolas e nas instituições. A Fenaj e os sindicatos devem manter suas palavras de ordem, suas falas e seus discursos de mobilização, já que não podem (nunca) renunciar as suas funções políticas e aglutinadoras. Mas, insisto, a ideologização do debate sobre o diploma não cumpre propósitos além dos da mobilização.

Mas se não a Fenaj, quem deve liderar esse processo? O Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo? A Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo? A Associação Brasileira de Imprensa? O Conselho Nacional de Comunicação Social? A Sociedade de Estudos Interdisciplinares de Comunicação? Sinceramente, não sei que entidade conseguiria reunir legitimidade, representatividade e autoridade para tanto. Talvez nem uma nem outra. Talvez um novo coletivo, especialmente formado para isso. Não tenho essa resposta. Mas é fundamental que a academia, o mercado e outros setores da sociedade possam qualificar o debate, dando mais nível e direção às discussões. É importante que esses atores contribuam para a compreensão da questão, que pensem e proponham saídas, e que tenham no seu horizonte de trabalho um único objetivo: atender às demandas da sociedade.

Se conseguirmos mostrar que o jornalismo é algo relevante e essencial para a sociedade; se conseguirmos mostrar que o jornalismo deve ser exercido por profissionais especializados e bem formados; e se conseguirmos mostrar que o nosso sistema de ensino pode responder por essa demanda social; aí, sim, estaremos contribuindo substancialmente para uma sociedade e um jornalismo melhores.

ATUALIZAÇÃO de 20/10/2008: O professor Jacques Mick (Ielusc) também tratou de nossa insuficiência e precariedade teóricas na conferência que deu no 2º Encontro de Professores de Jornalismo de Santa Catarina e 4º do Paraná. Um resumo aqui.

ATUALIZAÇÃO de 21/10/2008: Retomo esse assunto para debater com Mauricio Tuffani aqui.

24 comentários em “discussão sobre o diploma está muito ideologizada

  1. a classe está preocupada, afinal, jornalistas não são respeitados, mas são temidos, odiados ou tratados com desdém, além do mais, os que não sucubem as tentações do poder, ganham mal…e aí, isso seria um golpe terrível.

  2. Olá, buenas. Textão, mas ótima leitura. Só posso dizer que a correria tá grande, é muito trabalho para pouca gente e desse gente, daqui a pouco não tem formado, diploma ou coisa que o valha que aguente o tranco de informar bem, corretamente, com ética, precisão, etc. Quando se chega ao ponto de passarem ao repórter uma batata quente como “se vira e faça um caderno de oito páginas até segunda (sendo que é sexta-feira e a pessoa não vai trabalhar no fim de semana, e nem metade das fontes atenderiam…)”, é porque a coisa tá feia. Acaba que, questão de sobrevivência mental, emocional, sei lá, a última coisa que o jornalista que está na linha de frente pensa é: pensar o mínimo possível, se possível nada, no próprio jornalismo.

    Mudei de blog. Estou no http://interatura.blogspot.com. Talvez porque o chapéu da última frase aí acima já me esteja servindo. Abraços.

  3. No trecho “é muito trabalho pra pouca gente e desse gente” era pra ser “e desse jeito…”

    Acrescentei o monitorando lá no meu blogroll. Muda meu endereço aí no teu blogroll. Valeu.

  4. Eu, como jornalista e preocupado com o futuro da profissão, acredito na obrigatoriedade, muito expresso no que você colocou no seu texto. Porém, acredito que o próprio mercado irá “regular” a imprensa, isto é, a credibilidade dos grandes jornais, por exemplo, vai depender muito da capacidade técnica e ética dos seus jornalistas. E mais: se as novas tecnologias impõe uma exigência de aperfeiçoamento do jornalista, impõe também um outro fator preponderante que é a web 2.0. Isso quer dizer que a tão fadada liberdade de expressão que a juíza Carla Rister diz que o jornalismo diplomado restringe, cai por terra pela liberdade que a internet permite. Qualquer um publica o que quer e ponto final. Quem vai ler? Aí é outra história…
    Portanto, eu acho que o debate para a obrigatoriedade é válida e até me posiciono a favor, mas acho que não deve ser ponto primordial para as discussões da profissão. Se o diploma não for obrigatório, que seja. O próprio mercado se regula.

  5. É um pouco complicado tentar conseguir o respeito da população quando nós mesmos sabemos como funciona o sistema. A corrida pela adequação das pautas (que muitas vezes leva à deturpação das declarações do entrevistado), o famoso “jabá”, as matérias encomendadas, a história do “eu escrevo a matéria e o outro assina”… Exerço o jornalismo desde 2001 e não sou formada. Estou cursando para ter o diploma (por questões puramente burocráticas), porém, digo por experiência própria que ele é bastante desnecessário. Já trabalhei com jornalistas diplomados bem incompetentes, daqueles incapazes de localizar o estado de São Paulo em um mapa do Brasil. Não adianta exigir o diploma, se não houver um modo de testar a capacidade de tais profissionais. Diploma é só papel e discernimento não se adquire em banco de escola. Abraço!

  6. Sou jornalista desde 1988. Não sou diplomado. Assim como a colega Fernanda Lizardo (um ou dois posts acima) também estou cursando por motivos meramente burocráticos. Certamente não serei mais jornalista do que já sou agora após colocar a mão no canudo.

    Em 20 anos de profissão me deparei com jornalistas maravilhosos (com ou sem diploma), medíocres (de ambos os tipos) e péssimos (também das duas qualidades). Portanto, em minha modesta opinião, universidade não forma jornalista, sendo eu, assim, contra a exigência do diploma. Discordo da maioria dos argumentos usados neste artigo para afirmar o contrário.

    Em primeiro lugar é bom dizer que o argumento principal para o sepultamento definitivo deste anacronismo corporativista não repousa na relação entre jornalismo e liberdade de expressão. Aliás, este argumento está passado e só é usado quando, de fato, não há interesse em debater nada. Diversos artigos já abordaram este tema demonstrando que a liberdade de expressão não é o foco do debate, mas cito o artigo “A liberdade de expressão e o diploma de jornalismo”, de Maurício Tuffani, como essencial para o entendimento da questão pelo ponto de vista de quem não concorda com a exigência do diploma.

    Quando o autor diz que “retirar a obrigatoriedade do diploma para jornalistas é recuar na história na medida em que reforçamos o entendimento de que não é necessário estudar, não é preciso se habilitar ou se capacitar para uma dada profissão”, eu poderia gracejar dizendo que recuamos do patamar onde se encontram África do Sul, Arábia Saudita, Colômbia, Congo, Costa do Marfim, Croácia, Equador, Honduras, Indonésia, Síria, Tunísia, Turquia e Ucrânia (países que exigem diploma para exercício do jornalismo) para outro patamar onde estão Estados Unidos, Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Chile, China, Colômbia, Dinamarca Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Peru, Polônia, Reino Unido, Suécia, Suíça e vários outros países onde não existe tal exigência (e onde o jornalismo, diga-se de passagem, nada deve ao nosso).

    No entanto, o tema não permite gracejos. É preciso deixar claro, então, que os que defendem a não obrigatoriedade do diploma não querem com isso desqualificar o papel da graduação superior em jornalismo na formação dos profissionais, muito menos negar o mérito de propostas de regulamentação da profissão de jornalista no Brasil. Pelo contrário. Aliás, em muitos dos países citados acima (entre os que não exigem o diploma) o curso superior de jornalismo e a não exigência do diploma convivem pacificamente. Nestes países, a formação superior na área transformou-se no que ela deveria ser no Brasil, um plus. No Brasil (salvo raras exceções de ensino de excelência) é apenas reserva de mercado descarada.

    Fico na dúvida também sobre o argumento de que “o mercado não tem condições de treinar e aprimorar todos os contingentes que anseiam por isso”. Diz o autor, ainda, que “o mercado não ensina, as empresas não têm infra-estrutura nem tempo ou prioridade para fazê-lo”. Faz-me lembrar Benjamin Bradlee (vice-presidente do jornal The Washington Post, onde foi editor-chefe de 1968 a 1991, responsável pela cobertura do Caso Watergate) em entrevista a Paulo Sotero (O homem que derrubou o presidente dos EUA – O Estado de S. Paulo, 30/10/1999, Caderno 2). Diz ele: “Não gosto disso [a obrigatoriedade do diploma de jornalismo no Brasil]. Menos da metade dos jornalistas do Post estudaram em escola de jornalismo. Se você me perguntar quem eu contrataria para trabalhar aqui, entre um jovem saído de Amherst College, com uma boa formação humanística e geral, ou uma pessoa com um diploma da escola de jornalismo da Universidade de Arizona, escolherei sempre o candidato de Amherst College, mesmo que ele ou ela não saiba muito sobre jornalismo. Isso, eu ensinarei a eles, na redação”.

    Concordo plenamente.

  7. Se o que está em discussão é o direito à liberdade de expressão, convém parar para analisar o perfil do procurador regional federal André de Carvalho Ramos, doutor pela Uniban – Universidade Bandeirantes de São Paulo – autor da Ação Civil Pública que requer a extinção da obrigatoriedade do diploma específico para o exercício do Jornalismo. Na ação que ele moveu contra o SBT, em 2003, retirando do ar o programa Domingo Legal por causa de entrevista com supostos integrantes da organização criminosa chamada de PCC, ele argumenta que aquela atitude não representava ato de censura. Tudo bem. Discutível, mesmo, é se, ao proibir um programa de entretenimento, cuja realização não contava com jornalista profissional responsável, ele estava exercendo censura sobre o direito à informação. A controvérsia, que merece um olhar sobre o perfil do douto procurador, é o conceito de censura que ele adota: ele cita (“…por exemplo, obra do procurador regional da República Domingos Sávio Dresch da Silveira, que classifica censura como algo realizado por agente da administração pública, não da Justiça, para vedar uma obra, sem o devido processo legal, e tendo como base critérios vagos como a moral e a ordem pública”. Ora, segundo seu critério, um juiz de primeira instância pode, a qualquer momento, tirar do ar o Jornal Nacional, o Jornal da Record, ou o Jornal da Band, ou suspender a licença da Rádio CBN, ou interromper a impressão da Folha de S.Paulo, desde que dentro do devido processo legal. Além disso, o fato de o procurador ser o autor da ação contra o diploma de Jornalismo não quer dizer que não tenha sido “inspirado” pelas empresas de comunicação, sempre interessadas em qualquer medida que lhes permita reduzir o custo. Ademais, esse debate nasce ocioso, pois foi gerado na redação da Folha de S.Paulo, no final dos anos 80, quando, após a reforma gráfica do jornal, percebeu-se que boa parte dos novos produtos, como os guias de serviços e de cinema, não exigiam profissionais qualificados como jornalistas. No entanto, precisavam ser autenticados como produtos jornalísticos, para que se enquadrassem nos padrões do negócio, com os benefícios fiscais de praxe. A bola levantada pela direção da Folha encontrou um punhado de oportunistas ávidos por um lugar nas redações, e o tema foi sendo lustrado pelo verniz do politicamente correto. Travestir esse debate como tema relacionado à liberdade de expressão é desonestidade intelectual.

  8. Ora, a questão não pode ser isolada no caso do exercício de apenas uma profissão. Se quisermos levar a sério qualquer debate sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista, temos que, antes, abrir o leque para todas as profissões regulamentadas e algumas atividades limitadas por legislação específica, como as cartorárias, e fechar o foco seletivamente. Nesse processo se faz o condicionamento ideológico em que o debate irá se situar. Isolar o tema do diploma de jornalismo é condicionar o debate à inevitável ideologização. Isolado, o tema do diploma para jornalistas deve ser ideologizado, pois não se pode abordar questões como direito à informação e outras garantias democráticas sem que esteja sempre à mão o que cada um entende, ideologicamente, por democracia. Demonizar a ideologia é o primeiro passo para condicionar o debate aos interesses dissimulados na profusão de citações – todas elas escolhidas sob critérios ideológicos. Encarar, honestamente, a inevitabilidade da ideologização, é o primeiro passo para um debate profícuo. O resto é manipulação do vernáculo.

  9. Caro Luciano,

    Permita-me contestar algumas de suas afirmações. Primeiramente, a ação contra o SBT em 2003 não foi movida pelo procurador da República André de Carvalho Ramos, mas por sua colega Eugênia Fávero. O procurador posteriormente assinou nota de apoio à iniciativa dela.

    Em segundo lugar, essa ação do MPF visou proibir, com o objetivo de punição, a veiculação do citado quadro do programa seguinte ao apresentado, independentemente de seu conteúdo. Podemos discutir e até negar a legalidade e a validade dessa medida, mas ela não é censura, uma vez que foi tomada independentemente do conteúdo a ser exibido, que poderia ser aproveitado para a apresentação seguinte. Como mostra o Houaiss, censura é o “exame a que são submetidos trabalhos de cunho artístico ou informativo, ger. com base em critérios de caráter moral ou político, para decidir sobre a conveniência de serem ou não liberados para apresentação ou exibição ao público em geral”. Não foi o caso.

    Em terceiro lugar, é perigosa a estrutura lógica de seu comentário de que “o fato de o procurador ser o autor da ação contra o diploma de Jornalismo não quer dizer que não tenha sido ‘inspirado’ pelas empresas de comunicação”. Com essa estrutura lógica (uma negação implicando outra) pode-se dizer qualquer coisa, ao gosto de quem diz. Por exemplo, o fato de você não se pronunciar em nome de nenhuma faculdade de jornalismo não quer dizer que você não tenha sido ‘inspirado’ por alguma delas (e tenho certeza de que não é o caso).

    Em quarto lugar, é irrelevante o perfil ideológico do procurador para o mérito da ação por ele proposta, seja ele equivalente ao do Raymond Aron ou ao do Jean-Paul Sartre. Um juiz federal não pode se basear no mérito de uma ação passada de um procurador para julgar uma mais recente. (O juiz convocado (como desembargador) que manteve a liminar de 2001 da juíza Carla Rister e foi contrário a um agravo de instrumento contra a sentença dela de 2002 teve seu perfil ideológico amplamente traçado pela Fenaj. Mas foi ele quem acabou promovendo o anulamento da sentença.) Sem falar que a história já nos pregou várias peças com perfis ideológicos.

    Em quinto lugar, eu me baseio no direito de expressão em minhas contestações à obrigatoriedade do diploma, e você as conhece. Mas jamais recebi uma contestação sua de mérito que as caracterizasse como desonestidade intelectual.

    Finalmente, concordo com sua crítica à satanização dos aspectos ideológicos.

    Saudações,

    Maurício Tuffani

  10. Obrigado, Luciano, pela remissão histórica. Entretanto, mais do que a questão ideológica, me preocupa no momento é o aprofundamento do debate por outros caminhos que não os corporativos. Apenas isso. Não rechaço a ideologia, não ignoro tais aspectos. Minha crítica mesmo é que muitos setores só vêm tratando do tema por essas linhas. Apenas isso…

    Portanto, não há “satanização dos aspectos ideológicos”, Tuffani. Há, apenas, da minha parte uma preocupação com uma discussão que transcenda os interesses classistas e alcance a sociedade como um todo.

    Em tempo: Tuffani, respondi ao seu artigo nos comentários. Espero que o moderador aprove…

  11. Caro Mauricio, minha observação sobre a desonestidade intelectual no presente caso se refere, entre outras coisas, à omissão da origem desse debate, citado no post anterior. Essa desonestidade pode estar manifesta também na seleção de citações que pretensamente referendam a opinião reiterada pelo autor. Convenhamos que raros leitores têm disponibilidade para checar essas referências, mas algumas delas são simplesmente desconectadas do tema abordado. Cito apenas, para não me alongar, a opinião de Gabriel Garcia Marquez, com quem tive o privilégio de partilhar o projeto “Jornal Ideal” há dez anos: a citação que você usa no artigo “A Lógica, o Beabá (…)” – publicado em 2003 na revista Consultor Jurídico, não se refere à questão do diploma, mas à da qualidade do ensino de jornalismo. Você induz o leitor a considerar a reputação de Garcia Marquez como suporte ao seu ponto de vista. E omite o fato de que a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano seleciona para seus cursos estudantes de Jornalismo, onde a regulamentação existe, e jornalistas profissionais onde o reconhecimento acontece por outras formas.
    Sobre o procurador citado, ele é coautor, sim, e a escolha da referência para fundamentar a idéia de censura diz bastante sobre seu posicionamento na questão. E, sim, seu perfil ideológico conta no caso da exigência do diploma, já que ele tomou a iniciativa de interferir num processo já então extremamente ideologizado.
    Não me agrada usar essa expressão – “desonestidade intelectual” – e se ela te ofendeu peço desculpas publicamente, mas lembro que em outra ocasião você se referiu a seus oponentes nos seguintes termos: “O que está passando dos limites é a hipocrisia, a desonestidade e a indigência intelectual de muitos daqueles que participam desse debate por meio de artigos, comentários curtos em sites e em chats, que afirmam que profissionais como eu, que não têm o famigerado canudo, não são capazes de trabalhar com a ética e a técnica que a profissão exige”. Para exigir tratamento condigno, você deveria antes ter explicitado quem e quando, na sua opinião, manifestou hipocrisia, desonestidade e indigência intelectual na fartura de manifestações a que você teve acesso.
    Ainda assim, retiro a expressão “desonestidade intelectual” e substituo por “omissão e equívoco”. Neste caso, também preciso lembrar sua citação epigrafada “Overview: The Americas”, do CPJ [“An October ruling suspended Decree-Law 972, issued under military rulers in 1969, which required citizens to hold a university diploma in journalism before registering as a journalist with the Ministry of Labor. In 1985, the Costa Rica based Inter-American Court of Human Rights ruled that mandatory licensing of journalists violates the American Convention on Human Rights.” ].
    Aqui você também comete um equívoco por omissão, pois a deliberação da Corte Interamericana de Direitos Humanos se referia ao caso específico do Colegio de Periodistas da Costa Rica, uma espécie de Ordem dos Jornalistas – instituição equivalente, naquele país, a outros colegiados de profissionais diplomados, como o dos engenheiros, dos contabilistas e dos advogados. No caso específico da citação dessa decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, muito valorizada neste debate, é preciso observar que o texto da resolução condena o uso do condicionamento para exercício da profissão como instrumento de controle do acesso aos meios de comunicação.
    A corte tratou de “la colegiación obligatoria de periodistas, EM CUANTO IMPIDA EL ACCESO DE CUALQUIER PERSONA AL USO PLENO DE LOS MEDIOS DE COMUNICACION SOCIAL PARA EXPRESARSE O PARA TRANSMITIR INFORMACIÓN”. A comunicação foi dada a pedido da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), através do governo da Costa Rica (que era parte legítima para fazer a consulta). Foi citado especificamente o caso do cidadão Stephen Schmidt, condenado a três meses de detenção por prática ilegal da profissão de jornalista, de acordo com a lei nacional da Costa Rica.
    Quanto a esse tema específico, a Resolução 17/84 da Comissão declarou: “Que la Ley no. 4420 de 18 de setiembre de 1969 Orgánica del Colégio de Periodistas de Costa Rica, asi como las normas que la reglamentan y la sentencia dictada por la Sala Tercera de la Corte Suprema de Justicia de la República de Costa Rica de 3 de Junio de 1983 por la que se condemnó al señor Stephen Schmidt a tres meses de prisión por ejercício ilegal de la profesión de periodista, así como los demás hechos establecidos em la petición, NO CONSTITUYEN VIOLACIÓN (capitulares minhas) del artículo 13 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos”.
    A longa deliberação da Comissão (64 páginas no original em espanhol) conclui efetivamente que: “La corte es de opinión: Primero, por unanimidad, que la colegiación obligatoria de periodistas, EM CUANTO impida el acceso de cualquier persona al uso pleno de los medios de comunicación social como vehículo para expresarse o para transmitir información, es incompatible con el artículo 13 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Segundo, por unanimidad, que la Ley nº. 4420 de 22 de setiembre de 1969, Ley Orgánica del Colegio de Periodistas de Costa Rica, objeto de la presente consulta, EN CUANTO impide a ciertas personas el pertenecer al Colegio de Periodistas y, por consiguiente, el uso pleno de los medios de comunicación social como vehículo para expresarse y transmitir información, es incompatible con el artículo 13 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos”.
    No entanto, ao longo do julgamento fica claro que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos não se opõe à regulamentação da profissão de jornalista – inclusive com a exigência de diploma específico – desde que as normas dessa regulamentação não restrinjam o acesso de qualquer cidadão ao direito universal à liberdade de pensamento e expressão. Está no Cap. IV, art. 60: “La pertenencia a um colegio o la exigencia de tarjeta para el ejercicio de la profesion de periodista no implica para nadie restrición a las libertades de pensamiento y expresión, sino uma reglamentación que cabe al Poder Ejecutivo sobre las condiciones de idoneidad de los titulos, así como la inspección sobre su ejercício como un imperativo de la seguridad social y una garantia de una mejor protección de los derechos humanos”. Ora, como se sabe, no Brasil qualquer indivíduo alfabetizado tem acesso irrestrito aos meios de comunicação, na qualidade de comentarista, articulista, missivista, entrevistado ou analista. A única restrição reconhecida é a da qualificação subjetiva, a critério ideológico, religioso, filosófico ou partidário do controlador de tal ou qual veículo de comunicação.
    Sinto não contar com disponibilidade para oferecer uma contribuição de melhor qualidade ao debate. O caso do Colegio de Periodistas da Costa Rica foi tema de aulas em muitas escolas de jornalismo nos anos 80 e 90. Participei de algumas discussões, na ECA da USP, na Unisinos do Rio Grande do Sul e em outras escolas. A propósito, a deliberação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos condena os monopólios de meios de comunicação, fundados “para intentar moldear la opinión pública segun um solo punto de vista”. Mas não creio que esse tema esteja no seu horizonte de interesses. Mesmo porque, se ingressar nessa discussão com honestidade, você estará reduzindo suas chances de vir a trabalhar na chamada grande imprensa. Com ou sem diploma de jornalista.
    Um abraço.

  12. Prezado Luciano,

    Diferentemente do que você afirma e do que teria sido ensinado nas “aulas em muitas escolas de jornalismo nos anos 80 e 90”, a manifestação da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi explicitamente contrária a qualquer exigência de diploma de jornalismo para o exercício dessa profissão, como deixa claro o trecho a seguir:

    “De las anteriores consideraciones se desprende que no es compatible con la Convención una ley de colegiación de periodistas que impida el ejercicio del periodismo a quienes no sean miembros del colegio y limite el acceso a éste a los GRADUADOS en una determinada carrera universitaria.”. (pág. 23 do documento acessível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_05_esp.pdf)

    Quanto àqueles aos quais atribuí “hipocrisia, a desonestidade e a indigência intelectual “, não era necessário, para eu “exigir tratamento condigno”, tê-los citado nominalmente, uma vez que deixei claro qual era o critério de inclusão: a afirmação de que “quem não têm o famigerado canudo, não são capazes de trabalhar com a ética e a técnica que a profissão exige”. Não foi, portanto, uma qualificação indiscriminada em relação aos que são favoráveis à exigência do diploma, e eu a mantenho.

    Você se equivoca também ao afirmar que eu teria dito que Gabriel García-Márquez se pronunciou contra a exigência de diploma para jornalistas. O que eu disse foi que ele “já havia manifestado em 1996 seu profundo descontentamento com a formação superior específica para a profissão: ‘O resultado, em geral, não é alentador. Os rapazes que saem iludidos das faculdades, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais’.” (http://laudascriticas.wordpress.com/artigos/logica-be-a-ba-diploma).

    Quanto ao procurador ter assinado a ação, trata-se de uma co-autoria muito freqüente no Ministério Público: um procurador elabora a ação e alguns colegas da mesma curadoria a assinam para poder substituir o autor em sua eventual falta. Estou entrando nesse mérito só porque você disse que ele era O AUTOR da ação no caso do SBT. Mas deixo de lado a questão que importa, a do perfil ideológico, poie ela rende outra longa discussão.

    Finalmente, lamento que você recorra ao expediente de pressupor, e de forma preconceituosa, o que esteja no meu “horizonte de interesses”. Você não tem obrigação de saber que tenho criticado publicamente em muitas palestrar os monopólios dos meios de comunicação. Tambem não tem obrigação de ler textos nos quais apontei as conglomerações e fusões de empresas de jornalismo com outras, de outros ramos de atividade (por exemplo, http://laudascriticas.wordpress.com/2008/08/19/o-mal-estar-na-informacao). Mas, por outro lado, você não pode, do ponto de vista lógico, negar a existência daquilo que simplesmente desconhece.

    Tudo bem. Não deixarei, por causa desses seus descuidos, de ler seus valiosos artigos.

    Saudações.

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